sábado, 30 de maio de 2015

Intromissão


Altos da Bronze, rua Duque de Caxias, décimo andar de um belo e imponente edifício antigo.

Compartilho este andar com mais três condôminos.

Pois lhes conto que um dia estava eu passando pelo corredor, quando ouvi vozes que vinham da área de serviço de uma moça, cujo apartamento faz divisa com o meu.

Minha vizinha é muito bonita e elegante. Muitas vezes a vejo sair pela manhã e retornar à tardinha. Ouço o toc, toc dos sapatos de salto, e corro para o corredor. Nos cumprimentamos, só isso. Estou bastante curiosa. Não sei sua idade, se vive sozinha, se tem namorado, onde trabalha, se estuda ... Não é por mal, não! É que gosto de saber das coisas e ajudar os vizinhos. Afinal a moça se mudou a pouco tempo e pode precisar de ajuda.

Um dia destes pensei numa maneira de me aproximar dela. Fui até o meu quarto e peguei a capelinha. Bati de leve em sua porta e levantando a imagem de nossa senhora até o olho mágico, falei: - É a visita de nossa senhora, moça! Sabe o que ela fez? Pois imaginem só, ela gritou lá de dentro: -Não quero, obrigada. Voltei para o meu apartamento bastante indignada e falando comigo mesma: -Será possível que ela não goste da mãe de Jesus?

Naquela noite fiquei imaginando mil coisas. Ardia de curiosidade. Como seria o apartamento dela, porque não me deixou entrar?

Durante a reforma, que durou três meses, o barulho era infernal. Volta e meia ela aparecia, eu ouvia a conversa com os operários mas não conseguia entender o que diziam e nestas horas eu ficava de orelha em pé, mas de nada adiantava.

Um belo dia, num sábado, lembro bem, ela chegou com a mudança. Fiquei tão ansiosa que nem consegui ver televisão. Perdi a novela das oito, o noticiário... Vizinha nova; fofocas novas, oba!

Mas eu ia contar sobre as vozes... Pois naquele dia colei o ouvido na porta que da para a área da tal moça e ouvi isto: -Calma, vai ficar tudo bem, ta bom? Me da teus pezinhos, assim... te enterro na área, tu ficas te aquecendo ao sol...Bastante água... prometo que não vou te afogar... agora ponho mais terra por cima... isso, assim.... agora tira o bracinho para fora, assim... pronto... pronto.
Agora, fica bem aí, ta bom? Vou jantar, depois volto para te ver ta, queridinha?

Bem, não é preciso dizer que fiquei apavorada. Primeiro paralisei. Depois pensei em chamar o zelador do edifício. Mas refleti, afinal ele podia dizer que era o descobridor, o detetive, o esperto que flagrou a criminosa e eu não queria de maneira alguma perder nenhum dos títulos que me cabiam, que me pertenciam por direito. Foi quando resolvi correr ao telefone e ligar para polícia.

-Alô, é da policia? Sim? Pelo amor de Deus venham depressa antes que seja tarde, tem uma doida enterrando alguém aqui no edifício, alô, só um momento já vou dar o endereço...

Nisto, a campainha soou estridente e logo a seguir ouvi a voz dela, da assassina, imaginem?! Já nem tinha vontade de conhecer a criatura. Tremi dos pés a cabeça, e no telefone a voz insistente gritava: -Fale minha senhora, diga o endereço...

Larguei o aparelho e busquei dentro de mim a coragem que nem sabia que tinha. Abri a portinhola e perguntei: -O que a senhorita deseja? Ao que ela respondeu: -É que ganhei esta muda de pimenta de jardim, é muito frágil, e queria saber se a senhora pode me ajudar, ela parece triste. Já conversei com a pobrezinha, reguei, coloquei terra nova, bem fofa, mas não sei se ela vai sobreviver. A senhora tem na sua área folhagens lindas e deve ter experiência com plantas pequenas, não é mesmo?

Ufa, que alívio. Com que então, era isso!?

Eu e a moça, minha vizinha misteriosa, temos afinidades, interessante, muito interessante.
Peguei o telefone e ainda ouvi a voz aflita que gritava: - Alô, alô, fale por favor!
Coloquei o fone no gancho e corri até a porta para abri-la e convidar a moça à entrar.

Não sei se salvo a plantinha desta maluca, mas desta vez mato minha curiosidade. Ah! Se mato.  

Gerci Oliveira Godoy      

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Carta de libertação

Pela primeira vez, em séculos, os Caboclos resolveram fazer uma visita ao Grande Pajé, em um sábado de manhã. As reuniões dos Caboclos eram feitas sempre as segundas pela manhã. Pois, no domingo era o dia de trabalho dos Pretos.

Chegando à tribo do Grande Pajé, os caboclos foram reverenciados pelos índios. Chegando ao grande Pajé, sentaram-se em meio a uma clareira na mata e colocaram as questões que lhe atormentavam.

Os caboclos reclamavam que haviam testemunhado uma forma comércio espiritual, por parte de algumas pessoas, de entidades ancestrais, como cavalos ou escravos. Só que tais pessoas, quando induzidas a comercializar a ‘própria vida’ não sabiam que estavam trazendo ao matadouro os ancestrais próximos e distantes.

O comércio funcionava da seguinte forma. Moças e rapazes faziam-se aceitos e assinados como tendo determinadas ‘identidade espirituais’. Como se fossem ‘santos’, ‘anjos’ ou ‘demônios’. Então, em troca de algum benefício, tratavam, de forma irracional, o comércio das respectivas ‘entidades’, com as quais teriam sido reconhecidos.

O fato controverso desta história é que, os verdadeiros ‘santos’, ‘anjos’ e ‘demônios’, estão livres de serem submetidos a este tipo de transação. Mas o que acontecia, era que, ao pensar que estavam comercializando uma ‘identidade’, os jovens estavam comprometendo as respectivas linhagens ancestrais.

Os Caboclos trouxeram, ao Pajé, o pedido, por parte dos jovens, de libertação dos respectivos ancestrais que estariam sendo vítimas de escravidão e trabalho forçado. O Pajé, comovido com a história, disse que o mesmo havia sido tentado fazer com os Pretos. Os quais, recentemente, conquistaram o contrário da escravidão, através da legitimação da liberdade de ir e vir.

Ao passar o Chá de Caah, entre os espíritos presentes, selou-se a libertação das entidades envolvidas. Fazendo-lhes o convite de fazerem-se presentes, sempre que desejarem. “Aqui preservamos nossos ancestrais. Desde os astros do céu às plantas e animais” – Assim Concluiu o Grande Pajé.

Juliano Dornelles
Membro do Partenon Literário
Site pessoal: pazdornelles.com